sábado, 4 de setembro de 2010

Artigo sobre a Bienal do Livro - por Antônio Gil Neto


O Lugar do Livro não é na Bienal
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Tenho que admitir: lugar de livro não é na Bienal. Esfrego bem as mãos quando digo isso a mim mesmo. Posso estar levantando um certo impropério ou comprando briga boba, mas acho que logo você vai me entender. E concordar ou discordar. E retrucar, espero. Acho que há outros lugares para o livro viver.

Estive perambulando pela 21a. Bienal do Livro de São Paulo para o costumeiro passeio. Dias depois voltei para lançar um livro que escrevi com um amigo e ilustrei. Fico pensando com passos de quem trilhou uma carreira no ensino público e com esperanças de que a leitura seja matéria de excelência nos currículos e na vida, se é mesmo nesse espaço - que detona um turbilhão de estímulos em pessoas que dançam mais rápido que o pulsar da vida e do relógio - lugar de lançar, oferecer, manusear, iniciar um namoro profícuo com os livros. Sinto que há lugares melhores. E sobre isso também você vai dizer.

No passeio por esse cenário provisório vi muita gente e muitos livros, é claro. Vi livros de todas as formas possíveis e expostos. Vi áudio-livros, livros em código Braille, de pano, empilhados, abertos, em gôndolas de feira, quase chegando até a gente com alguém falando cara a cara, boca a boca e voz indefinida. Vi personagens fantasiados de personagens circulando, tomando café e tirando fotos com as crianças.

E por falar em crianças, vi muitos alunos uniformizados. Do infantil ao ensino médio. E professoras. Elas estavam super cansadas.Tinham que gritar para serem ouvidas. Preocupavam-se obrigatoriamente com a segurança e o bem estar das crianças, principalmente. Eram filas e filas que se desgovernavam num mínimo segundo por conta de mais um atrativo em papel. Ossos do ofício e do lugar. Elas, na grande maioria, não sabiam a qual dos estímulos seguir. Os alunos tinham às mãos um emaranhado de sacolinhas de plástico e papéis que se acumulam e se perdiam em rastros de folia de carnaval atemporal, em caminhos de floresta e de rio, simultâneos.

Os principais temas promulgados para o evento deste ano foram: Monteiro Lobato, Clarice Lispector, Livro Digital e Lusofonia. Durante bons minutos pude me deparar com a profusão. Havia chamados, ofertas, pessoas vibrantes e entusiastas em oferecer brindes suspeitos. Havia lanches, doces, refrigerantes, palestras, exposições, performances, cartazes, estandartes modernos, alto-falantes. Havia estandes dos mais variados, além dos mantidos pelas editoras oficiais: de instituições governamentais e não governamentais, de mídias eletrônicas, gibis, revistas de toda ordem e credo. Havia espaços alternativos: salão de ideias - para troca de ideias entre escritores e público; território livre - com debates sobre variados temas; palco literário - onde atores faziam leituras; espaço do professor - com oficinas para trabalhar a leitura. Havia uma exposição (O livro é uma viagem) feita de painéis digitais. Havia espaço para a turma da Mônica, a exposição sobre Monteiro Lobato e um espaço cuja atração era o livro digital. Havia ainda o espaço lusofonia, uma sala virtual com falantes do português em outras partes do mundo. Sem contar os seminários, debates, espaços dos mais variados. Senti numa ala um cheiro forte e atraente de chocolate com alguma especiaria. Era o espaço “cozinhando com palavras”, a todo vapor. Com aulas práticas, cheirosas e saborosas sobre cozinha e literatura. Encontrei estandes exibidores de logos de carros e de outras marcas do mercado. Nem preciso citá-las. E outros com autores e personalidades conhecidas e desconhecidas. Até sebo havia. Dois ou três. Sei que vieram alguns especialistas mundiais para falar do futuro do livro impresso no nosso recém-mundo digital. Estavam salpicados nas alamedas os contadores das mais variadas histórias para entreter as crianças. Por aí, acho que falei das principais atrações.

Na intenção de comprar um livro recém-lançado entrei num mega distribuidora bem a minha frente, apinhada de gentes de todas as tribos. Arrebatei a atenção de uma vendedora com olhos quase roxos de cansaço. Olhou-me com muxoxos de boca, mas pediu ajuda a um colega. Não conseguiram me dizer se havia o livro. O computador estava super ocupado. Uma fila interminável para se saber.

O que eu sentia é que estava num emaranhado e num lugar feito de super exposição. Parecido com um parque de diversão ou uma torre de Babel. Ou um imenso centro de compras que povoa as nossas existências consumidoras.

Será que você ficou com vontade de ter estado lá? Pode ser. Não é pecado mortal.

Veja bem. Não estou falando mal da Bienal do Livro. Acho que mal ela não faz. Ela tem a sua política e seu intento. Estou aqui pensando sobre essa hiperexposição do livro. Que impacto é esse? Em contrapartida, fico pensando com você num lugar do livro que seja deveras propulsor de leitores e semeador de leituras. Há lugares melhores. Plausíveis, posto que mais eficazes em relação a esses intentos comerciais. Vou falar de alguns. Você pode falar de outros, se lhe aprouver.

Antes, observei que em meio a tanta profusão de gentes e interesses, vi poucas crianças e adolescentes acompanhados na bela aventura de remexer nas artimanhas de algum livro acolhido no mostrador ou da estante. Um acompanhante companheiro, nessa hora, escolhendo, manuseando e oferecendo a cara límpida de algum livro, apresentando um fio de suas histórias faz mesmo diferença nessa fase de experimentar para ver o que poderá acontecer, não é não?

Não vislumbrei na maioria da multidão, entorpecida, dispersa e sem noção do labirinto, um caminhar com ligeira curiosidade para aquilo a que se destina um livro. O que quer e deseja realizar um livro em cada um de nós? Não encontrei muitas pessoas olhando os livros expostos como quem olha um doce numa vitrine pressentindo a delícia que está por vir. Não vi olhos de vontade de devorar, degustar, fazer acontecer.

Do lado educador aposto mesmo em outros lugares menores, nada alardeadores, sem a estridência das mídias e com poucos estímulos aliciantes, mas imprescindíveis para que o livro caia em algum redemoinho humano e aconteça de vez. Estou falando do encontro livro - leitor. Que acontece silenciosamente. Construído a partir de pequeninos pontos disparadores que se alargam e cobrem desejos e sonhos. Os livros viram vitrines; as capas, cortinas que se abrem para despertar desvios curiosos. Lugar pequeno, intenso. Alicerçador. Lugar de tantas brincadeiras íntimas e genuínas com as palavras.

Um lugar do livro é, com legítima certeza, a casa de cada um. E no cotidiano, com chuva e sol. Isto e aquilo. Ou seja, no lugar onde a gente mora no mundo: no quartinho, na rede, na tenda, no barraco, no apê, no casarão. Num tempo e espaço disponível. Sempre. Moram com a gente como pessoas queridas. Como frutos, flores. Alimento e beleza disponíveis ao nosso desejo particular. Como objetos de ficção - romances e contos, por exemplo – os livros se tornam instrumentos de conviver e compreender o mundo. E de ampliar a nossa sensibilidade. Nesse lugar, o livro não fala por si. É apenas possibilidade. Nele conta-se com alguém que compactua afetivamente desse encontro mágico que se faz com a sutileza e bons sentimentos. Quem não envereda pelo mundo mágico da fantasia aos sabores de uma voz convidativa e inebriante de alguém que nos quer bem? O livro é sempre um amoroso objeto que nos acompanha na vida. E a reinventa e a revigora.

Outro lugar do livro é, com necessária certeza, a escola. Nas salas de leitura - mesmo que as denominamos “bibliotecas” - onde o livro circula com verdade como objeto de primeira necessidade, consumível e perecível após uma fieira de leituras, sujeito a se autodestruir pelo saracotear dos muitos leitores. Ou nos espaços alternativos e improvisados intencionalmente e que impulsionam movimentos leitores: caixote, carriola ou carrinho de supermercado que circulam pelos corredores e salas de aula cheios de títulos disponíveis; uma cesta sob as árvores e leques dispostos nos pequenos pátios; os cantinhos leitores, sempre a postos; os pacotes armazenados em lombo de burro, caixeiro-viajante, que circula pela comunidade escolar à cata de novos leitores, ampliando leituras, criando novos espaços de respiro para os livros, esses inconfundíveis companheiros. E, sobretudo, nas salas de aula. Lugar nobre e principal onde estão as maiores possibilidades leitoras. Ali está o professor, mediador, porta –voz, cúmplice inevitável dos leitores em formação. Com seu projeto de leitura desenhado e aprimorado no fazer de cada dia. Também os alunos, os atores da leitura. E estão os livros, é claro: palco e ação. Sugeridos, experimentados, escolhidos, acolhidos, partilhados pelo gosto de espera e dos olhares que lhe despertaram. E experenciados. Sopros de vida. Nas múltiplas atividades conduzidas com leveza pelo professor e alunos os livros se transformam e transformam cada ser, imperceptivelmente. Constitui-se o “ser leitor” nesse lugar: na medição pedagógica. Com liberdade e alegrias. Sem alardes. Sem estridências.

Há muito para falar. Suponho que quem aqui se achegar silenciosamente e talvez nem tenha ido a alguma Bienal possa nos dizer sobre esse lugar e esse papel, o de cada um de nós na divulgação do livro. Qual deveria ser?

Antonio Gil Neto

http://escrevendo.cenpec.org.br/


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